Publicado em: 15/07/2025 às 08h20
Pedreiro, marceneiro, contínuo… A experiência de trabalho de Seu Jorge em Belford Roxo, nos anos 70, é das mais variadas. Até que a vida deu uma guinada para o rumo das artes. Ele descobriu o potencial de seu vozeirão na música, trabalhou em teatro e aprendeu, como diz, a se defender no violão, virando uma fábrica de hits. Atuou no cinema, aprendeu idiomas, se conectou a artistas de peso e sempre soube o poder de juntar as forças na arte. Segue consagrado no mundo todo, disseminando o antirracismo e sendo aplaudido por aí, fazendo música que atravessa oceanos.
Pedreiro, marceneiro, contínuo… A experiência de trabalho de Seu Jorge em Belford Roxo, nos anos 70, é das mais variadas. Até que a vida deu uma guinada para o rumo das artes. Ele descobriu o potencial de seu vozeirão na música, trabalhou em teatro e aprendeu, como diz, a se defender no violão, virando uma fábrica de hits. Atuou no cinema, aprendeu idiomas, se conectou a artistas de peso e sempre soube o poder de juntar as forças na arte. Segue consagrado no mundo todo, disseminando o antirracismo e sendo aplaudido por aí, fazendo música que atravessa oceanos.
Seu, de Seu Jorge, ele faz questão de dizer, não é um sinônimo de “senhor”. É um pronome possessivo. Seu Jorge, meu Jorge, Jorge do Brasil e do mundo. Que sorte a nossa.
Jorge, quando você percebeu, na juventude no Gogó da Ema, que tinha jeito para a música?
A música surgiu no serviço militar. Fui soldado em 1989 e ali me tornei corneteiro. Foi difícil para mim entender por que algumas pessoas se achavam tão superiores. Não via um tenente ali dando a mão para pessoas pretas. Acabei tomando punições no exército por estar desuniformizado. Tinha que usar um gorro e fazia muito calor, esquentava muito. Então, eu tirava esse gorro. Isso configurava indisciplina. Fui expulso 20 dias antes de acabar meu serviço. Mas eu assimilei o golpe e acabei ficando com a música. Antes disso, minha família nunca tinha me visto dançar ou cantar. O conselho que me davam era para arrumar um emprego regular.
Em 1990, meu irmão morreu em uma chacina e eu saí do bairro onde cresci, o Gogó da Ema, para morar na casa de um tio. Desde a adolescência, já tinha sido pedreiro, ladrilheiro, fiz todo tipo de serviços gerais, e minha tia achava um absurdo eu não estudar para trabalhar — por isso fiz supletivo à noite. Mas naquele tempo, Belford Roxo era um lugar muito rudimentar. E o teatro surgiu na minha vida quando saí de lá.
Quando vi a turma toda do teatro, me apaixonei. Me fez perceber uma série de pluralidades. Conheci pessoas, ganhei um violão e umas revistinhas e aprendi a tocar para me defender. Viver essa realidade no teatro não me deixou iludir
Pois é, você acabou indo parar no teatro… Sua história artística, aliás, se mistura nas carreiras de ator e de cantor.
Estava em um bar no Méier e ouvi Gabriel Moura dizer para alguém o dia de sua apresentação. Eu apareci lá. Ele era sobrinho do maestro Paulo Moura, que dirigia o teatro, e me convidou para trabalhar com ele. Lá encontrei muita gente incrível. Como não tinha onde morar nessa época, por ter saído da casa de minha mãe, aproveitei o lugar. Eu não queria vender 1 milhão de cópias. Queria tocar jazz instrumental, mas não tinha condição de estudar muito e acabei virando um artista popular, o que foi ótimo para mim.
E como foi a vida nessa época?
Eu morava na rua. Ninguém apoiava a arte e eu tive que renunciar ao apoio da minha família. Ficava na casa de um, de outro, tocava, comia no restaurante onde me apresentava… Era uma vida muito dura e eu fui degradando. Mas as pessoas eram muito legais comigo. Elas achavam um absurdo eu estar passando por tudo aquilo. Eu era um cara preto sem formação acadêmica nenhuma, complexado por ser preto magro, tido como feio. Mas as pessoas percebiam logo que eu não tinha maldade. Tinha até uma inocência meio caipira, porque vinha de um lugar que não era o centro do Rio. Por mais que eu tivesse uma negritude e um jeito descontraído, típico do carioca suburbano, rápido na coisa do improviso e da piada, não tinha aquela malandragem maldosa que quer levar vantagem em tudo. Isso tipifica os cariocas. Tive que melhorar a linguagem para me inserir. No fim, aprendi até outros idiomas.
Quando eu apresentei as versões de Bowie em português, eles ficaram chocados. Olhavam para o Wes Anderson e diziam que ele era genial por ter trazido um cantor talentoso, que não falava idioma estrangeiro algum, e de repente fazia versões bonitas daquelas músicas
Como foi isso de aprender tantas línguas, Jorge?
Eu tinha uma tia que foi para a Alemanha e outra que foi para a Grécia. Achava incrível que elas falavam grego e alemão. Não via a hora de ter uma oportunidade. Fui aprender línguas com o Bertrand Yves Dousand, um francês, em 1995. Ele era flautista e casado com Joana Medeiros, que frequentava o teatro. A gente acabou morando em Santa Tereza juntos e nos demos muito bem, um ruivo e um preto, ele não falava português, só francês. Mas a gente queria se comunicar e fui aprendendo a língua dele e ele a minha. Foi ele quem me ensinou bastante coisa. Cinco anos depois, fui para a França gravar umas vinhetas do disco “Favela Chic” e fui com meu francês básico. Mas aí eu tinha acesso à TV, e fui aprendendo mais. Anos depois, fui parar na Itália com o filme do Wes Anderson. Eu já falava francês, mas a Anjelica Huston me ajudou muito, e em pouco tempo aprendi a falar italiano também, além de me aprofundar no inglês.
Aproveitando o assunto, sua carreira no cinema não começou aí. Foi com “Cidade de Deus”?
“Cidade de Deus” foi um filme importante mesmo na minha carreira, gravei em 2001 e foi lançado em 2002. Mas minha relação com o cinema começou antes. O diretor finlandês Mika Kaurismäki veio para o Brasil em 1994 e foi até a companhia de teatro convocar atores para fazer figuração em três de seus filmes. Eu fui e fiquei fascinado. Não tirava o olho do set, da maquiagem, queria aprender tudo sobre o assunto. Tinha facilidade de aprender olhando, mas não imaginava me tornar ator de cinema. O Mika então queria fazer um documentário de música chamado “Moro no Brasil”, título do meu disco com o Farofa Carioca. O filme foi aclamado no Festival de Berlim e eu fui para lá em 2002. Foi quando conheci a Finlândia também. Fiquei fascinado com a Alemanha e resolvi estudar o idioma — algo que faço até hoje. Minha ideia sempre foi falar os idiomas para poder estar na TV dos países falando a língua local. Depois disso, fui convidado para fazer “Carandiru”, mas não consegui agenda. Aí então conheci o Wes Anderson e fui gravar “A Vida Marinha…”.
Você teve uma vida no Rio, enfrentou situações de racismo e, de repente, estava na Itália, gravando com atores como Bill Murray e Cate Blanchett. Como foi o impacto de conviver com tantas celebridades?
Eu não tinha como me deslumbrar, pelas minhas características. O efeito que a presença de todas essas pessoas teve em mim eu posso descrever. Willem Dafoe, de “Platoon”; Anjelica Huston, de “A Família Addams”; Bill Murray, de “Feitiço do Tempo”; Jeff Goldblum, de “A Mosca”. De repente, esses atores estavam ali na minha frente. Senti muitas coisas: pressão, vergonha, acanhamento, timidez. Não dominava o inglês, portanto não conseguia falar com eles. Não tinha assunto, mas fui muito bem tratado. Todos reconheceram meu talento.
O que mais aconteceu lá nessa época?
Foi lá que eu descobri minhas origens africanas. A Itália foi racista comigo, e percebi que ali eu era africano e não brasileiro. Naquela época, o país estava com uma questão em relação ao êxodo de imigrantes da África. Eu, brasileiro, desconectado dessas questões do mundo e sofrendo preconceito por ser confundido com um refugiado africano. Mas tinha que aproveitar o momento, só tinha “Cidade de Deus” na bagagem e estava com um elenco estrelado na minha frente. No set, eles diziam que a gente, no Brasil, produzia cultura de verdade e não só explodia carros, como o cinema americano. Foi ruim sermos conhecidos naquele contexto de violência, mas foi real. A gente não pode maquiar a situação e dizer que não existe problema, que aqui só tem praia bonita. Nos EUA, a gente não vê crianças em situação de miséria assim. Eu vivi dos zero aos 12 anos em ocupações. Perdemos o lar por mortandade. Vivemos uma chacina étnica aqui.
O fato de ter se descoberto africano leva a mais criações artísticas antirracistas, como “Medida Provisória” e “Marighella”?
“Marighella” e “Medida Provisória” são obras incríveis. Quando me convidam para esses papéis que podem contar essas histórias, eu aceito imediatamente. Lázaro Ramos, que dirige “Medida”, consegue quebrar uma normativa e colocar homens e mulheres negros na frente e atrás das câmeras. A pluralidade está na maquiagem, na cenografia. Isso não era possível há 23 anos, quando fiz “Cidade de Deus”. Milton Gonçalves é o segundo crachá da Rede Globo e nunca fez um protagonista. Era conhecido como ator negro. Eu não, eu sou ator. Algo mudou.
Você tem algo de cidadão do mundo. Por que se mudou para os EUA?
Foi uma oportunidade de intercâmbio de trabalho. Anthony Kiedis, Dave Matthews, Jack Johnson, Mario Caldato Jr. estavam interessados no que eu produzia. Uma das minhas filhas, Maria Aimée, tinha ido morar em São Francisco aos 3 anos de idade com a mãe. Fomos também. Ali fiz um disco mais sinfônico, depois gravei algo mais americano, focado em concorrer ao Grammy. Consegui o Green Card, ia me candidatar para ter cidadania, mas voltei. Achei que não fazia sentido deixar de ser brasileiro. Mas as meninas ficaram e seguem estudando nos EUA.
Para finalizar, conta para a gente a história da escolha do nome de seu quarto filho, Samba?
Samba é sobre identidade. Como negro, eu recebo de herança o processo histórico que se deu no Brasil. Samba é um nome senegalês que significa segundo filho. O cartório brasileiro ficou confuso, por achar que eu estava dando o nome do ritmo musical para meu filho, que poderia causar constrangimento. Mas eu expliquei que não existe esse nome nos cartórios e com tranquilidade expliquei a importância da questão de identidade. Vou tirar cidadania para ser reconhecido como africano e o Samba também terá esse direito.
O jeito como fui criado e como vivi não permitiu que me sentisse deslumbrado com o que vi na minha carreira.
O que faz a cabeça de Seu Jorge
Pedro Martins
Estou ouvindo muito um disco antigo dele, chamado “Vox”. Ele tem a alma de Beto Guedes, é virtuoso na guitarra e no aviolão e mora em Los Angeles. Faz parte da nova energia da MPB. É dessa turma também o Zé Ibarra e Bala Desejo. É bonito ver como a MPB se renova.
Escravidão, do Laurentino Gomes
Estou lendo essa obra que não é um romance. É história. Ali temos a documentação da primeira venda de escravos, em 1444. Dez anos depois, o documento que permite escravizar quem não fosse cristão. Dá para entender como tudo começa.
Beyoncé na Bahia
É muito interessante e não é por acaso que Salvador tenha sido escolhido pela cantora para a aparição surpresa em solo brasileiro. O pan-africanismo está tomando formas intercontinentais. A África virou um bom negócio e por isso a cidade com maior população preta do Brasil foi a escolhida